Lenda do Juiz do Soajo
Era uma vez um homem chamado João Congosta que exercia as funções de juiz na vila do Soajo, situada na aba da serra do mesmo nome, sobranceira ao Vale do Lima.
Isto passou-se há muitos e muitos anos, quando o Soajo era terra notável na defesa da fronteira com a Espanha, com foral concedido por D. Manuel e pelourinho onde se executava a justiça.
João Congosta era homem inteligente e honesto, admirado pelo povo que lhe aprovava as sentenças, quase sempre sobre pequenos delitos: o furto de um anho, por ocasião da Páscoa, ou de uns pés de coives galegas pelos frios de Natal.
Mais sério, as sacholadas por via da mudança de um marco ou desvio de umas águas do regadio.
Mas, um dia, viu-se a braços com um crime grave, que pôs toda a vila em polvorosa: a morte violenta de um lavrador soajeiro abastado, mandado assassinar por um fidalgo dos Arcos de Valdevez, que lhe devia um grosso de moedas.
O caso levou seu tempo a resolver, com buscas e interrogatórios dos culpados, falsas juras de inocência, provas forjadas, o diabo!
Todavia, João Congosta acabou por desdobrar a meada dos enredos e julgar, com saber e severidade, condenando o fidalgo e os seus cúmplices à pena máxima.
O pior é que o principal criminoso tinha padrinhos na Corte, gente pronta a influenciar El-Rei contra a sentença do juiz do Soajo, que descreviam como um pobre rústico, estúpido e ignorante.
Impressionado com tais palavras de mentira e de intriga, El-Rei remeteu o caso aos seus juízes que, por sua vez, convocaram João Congosta para mais perfeitos esclarecimentos.
João Congosta era um homem simples e que apenas uma única vez saíra da sua vila, indo por dever de profissão, até à vizinha Arcos, sede do seu julgado.
Recebeu, pois, com desagrado, aquela intimação para se deslocar à Corte.
Mas, embrulhado na sua inseparável capa de estamenha usada nas audiências, ala!
Até ao porto de Viana, onde embarcaria para Lisboa, pois a viajem por terra era demasiado morosa e insegura.
Desembarcado no Terreiro do Paço, a Capital perturbou-o, com o seu ruído, com o seu movimento de cavalos, bois, carroças e carruagens, gente de tantas raças, envergando os seus trajos tradicionais, algum animal exótico, para pasmo popular, e em mercado vivo e colorido, soltando os seus pregões, exibindo os seus produtos do campo e de além-mar.
Depressa se dirigiu ao Paço Real, magnífico na sua arquitetura, atravessou, com dificuldade, as barreiras da soldadesca, dos lacaios e dos pajens, chegando, por fim, ao vasto salão, onde o aguardavam os seus colegas da Corte, comodamente refastelados em solenes cadeirões de magistrados.
João Congosta procurou o seu, para um descanso, mas, sobretudo, para a tranquilidade de melhor ponderar e discutir.
Porém, todos eles se encontravam ocupados.
Os juízes da Corte não reconheciam, naquele labroste, vindo do cabo do mundo, sem modos nem pensamento, o direito à dignidade de uma cátedra.
O juiz do Soajo não hesitou.
Tirou dos ombros a capa das audiências, dobrou-a bem dobrada, num aumento conveniente de volume, pô-la no chão e sentou-se nela, ficando, assim, ao nível dos colegas, e aguardou que o consultassem sobre os motivos e a justeza da sua sentença.
Com uma admiração que, pouco a pouco, se ia tornando maior e mais entusiástica, os juízes da Corte viram que a sua própria experiência e sabedoria, e mesmo a manha com que obrigavam os réus a contradições e confusões de espírito, nada valiam ante a limpidez de raciocínio, a agudeza dos argumentos, o brilho da inteligência do parolo das serras, criado no convívio de gente boçal e entre matagais selvagens.
Terminada a sessão, todos louvaram a sentença de morte dada aos três assassinos, louvando, também, quem a proferira.
Levantou-se João Congosta e, com uma vénia, aproximou-se da porta de saída.
Então, um dos presentes advertiu-o que havia deixado, por esquecimento, a sua capa de audiências no chão do salão.
Com voz bem alta e clara, ouvida por todos, João Congosta retorquiu, numa lição ao desprezo de que fora vítima, ao entrar ali:
- O juiz de Soajo nunca levou consigo cadeira em que se sentou!
Reconhecendo a grosseria que haviam cometido, os juízes da Corte coraram e baixaram os olhos, de vergonha.
João Congosta não quis ficar um instante mais em Lisboa.
Tomou o primeiro barco para Viana e não tardou a voltar a gozar a beleza da sua serra, a entregar-se às obrigações do seu cargo, a receber o respeito e amizade dos seus conterrâneos.