A Pegadinha da Senhora
Todas as manhãs, bem cedinho, a menina deixava a sua casa e, com o rebanho, subia a encosta, à procura das melhores pastagens.
Naquela manhã de Março, assim aconteceu. Nem foi preciso a mãe acordá-la. A força do hábito e o sentido de responsabilidade que já possuía, apesar de ainda muito nova, faziam com que esta pastora de vida começasse a despertar, mal os primeiros cantos do galo ecoassem na madrugada.
Os seus dias começavam bem cedo e eram longos, longos, muito longos. Só terminavam quando os animais já dormiram e quando a mãe, depois de acomodar os irmãos, todos mais novos, lhe dava folga, sempre com as mesmas palavras, secas e frias: - Vai deitar-te, rapariga!
E a menina, de cujo nome ninguém se recorda, obedecia. Deitava-se e dormia, profundamente, aquecida pelo calor do curral.
Também nessa noite, dormira depressa. Porque, agora, o sol já começava a espreitar bastante mais cedo e as noites já eram bem mais pequenas. Dormira depressa e acordara mais feliz do que nunca. Cobriu melhor as duas irmãs que consigo partilhavam o colchão de palha e, pé ante pé, agarrada à cortina que servia de divisória, chegou perto da masseira. Ia procurar uma côdea para enganar a fome durante o dia... Mas a mãe, já desperta no seu canto do casebre, com o filho mais novo a chupar-lhe o peito quase seco, interrompeu-a do meio das sombras:
– Não há pão, rapariga! Comemos o último, ontem à noite. Vê se arranjas, por aí acima, alguma coisa com que matar a fome. E não te esqueças de dizer que sejas pelas alminhas do purgatório!
- Está bem, minha mãe. Eu desenrasco-me. Não se preocupe comigo...Até logo!
-Até logo, rapariga. Que Nossa Senhora te proteja!
– As tábuas do curral não tardaram a ranger e depressa o rebanho desapareceu no caminho, em direção ao monte. À medida que se afastavam de casa, a vista alongava-se por um horizonte infinito de beleza e os olhos da menina brilhavam de fascínio.
– Que dia bonito! E que céu azul...-pensava para consigo, enquanto descascava uma laranja que a tia Maria lhe dera e olhava, com ternura, uma cria gulosa que teimava em não largar o úbere da mãe.
À sua volta, o rebanho saboreava um enorme manto de pasto. E, ao longe, estendia-se um magnífico cenário de arrebatamento: de um lado, aquele imponente e enorme rochedo do Livramento, observando, lá do alto, toda a imensidão; do outro, a verdura macia do vale do lima, no seio da qual se escondia a sua casa.
A manhã começava a aquecer um pouquinho e a menina, com os pés encharcados da subida da encosta bem regada pelo orvalho de Março, resolveu sentar-se num penedo. Assim, os raios do sol eram mais seus, o calor daquela manhã, já primaveril, aconchegava um pouco o seu corpinho de criança. E por ali ficou, sentada naquele penedo, a embalar sonhos e a aquecer os pés!
De repente, uma luz muito intensa atravessou o céu azul e límpido. Era uma luz tão intensa que a menina, instintivamente, fechou os olhou, protegendo-os com as duas mãos. Mas a sua curiosidade infantil logo lhe pediu para ver o que se passava. E foi então que viu uma Senhora! Uma Senhora mais brilhante do que o sol, mais bela do que as estrelas. Vestia roupa branca e uma túnica azul celeste. E, com uma voz suave e carinhosa, falou sorridente à menina que olhava, fixamente, e de olhos esbugalhados de surpresa e algum receio:
– Não tenhas medo, minha filha! Vejo que estás a aquecer-te neste penedo. E a pensar no pão que não tens...
– Quem é a Senhora para saber isso? - interrompeu a menina, com determinação.
– Eu sou a Estrela da Manhã e apenas te quero guiar...- Respondeu a Senhora com um sorriso maternal. - Vai a casa e abre a masseira. Aí encontrarás o ouro dos pobres. Pega e sacia a tua fome!
– Mas eu não posso deixar o rebanho sozinho no monte. É o único sustento da minha família – lamentou a pastorinha.
- Não te preocupes. Eu fico a tomar conta dos animais, enquanto tu vais ao encontro do teu tesouro. Vai, vai...,vai!
A menina correu com todas as suas forças, valados, voou por atalhos. Os seus pés descalços desafiaram obstáculos e venceram o chão agreste. Num abrir e fechar de olhos, estava em casa, ofegante, com o seu corpinho afogado em suor.
Mal transpôs a entrada, deu de caras com a mãe que, de imediato, a olhou com ar ameaçador.
– O que estás aqui a fazer? Onde deixaste os animais, rapariga? - E, sem deixar a filha dizer uma palavra, não parava de ralhar e de lhe prometer uma valente coça, se, por acaso, desaparecesse alguma cria.
Depois de muitos gritos e ameaças, a menina lá conseguiu um segundo para abrir a boca e explicar o motivo do seu regresso antecipado.
A mãe... nem queria acreditar. Quase rebentava de fúria, quando a filha lhe contou a história da Senhora...
– Tu andas a brincar com coisas sérias, raparigas? Eu dou-te uma coça que te mato... -gritou ela, avançado para a menina que, cheia de medo, a custo lhe escapou entre os braços.
Correu, então, para a masseira. E abriu-a com a rapidez de um relâmpago. Estava cheia de pão fresco e bem dourado...
Um silêncio de arrepios encheu a casa humilde, até que a mãe, abraçando a filha, se ajoelhou junto da masseira e, bem apertadas, ambas agradeceram à Senhora um presente tão divino. Rezaram e trocaram um beijo! Foi com esse beijo a dançar-lhe no rosto feliz e com um pedaço de pão na mão que a menina se fez ao caminho e cruzou a encosta, em direção ao rebanho. Estava radiante e queria abraçar e beijar aquela Senhora, a Estrela da Manhã que lhe aparecera naquele penedo e lhe trouxera o pão da vida e a alegria dos pobres. E pedir-lhe que continuasse a guiar a sua família!
Mas, oh surpresa das surpresas, oh desgosto dos desgostos! Tanta pressa, tanta ilusão para nada... Onde está a Senhora mais brilhante do que o sol, mais bela do que as estrelas?
Encontrou apenas um enorme sossego e o rebanho deitado, tranquilamente, na erva pequena e macia. O sol já ia bem alto e a menina, desolada, sentou-se no penedo de sempre, olhando para os animais, à sua frente. Se eles falassem, ao menos poderia perguntar-lhes o que tinha acontecido na sua ausência!
Foi então que, de repente, se ergueu. As suas mãos acabavam de sentir nova aparição. O penedo já não era o mesmo. Na rocha, outrora lisa, estava gravada qualquer coisa. E os seus olhos, esbugalhados de espanto, puderam ver o sinal que a Senhora lhe deixara, antes de partir...A pegada da sua presença!
– Desde esse dia, a masseira da menina nunca mais ficou vazia. E naquele local, ergue-se, agora, uma capela em hora da Senhora da Pegadinha.
– Ao longo do ano, são muitos os devotos que até lá. Á procura de uma luz, ou em busca de uma pegadinha que indique o melhor caminho a seguir, ou em súplica pelo pão dourado do corpo e do espírito, ou...
Naquela manhã de Março, assim aconteceu. Nem foi preciso a mãe acordá-la. A força do hábito e o sentido de responsabilidade que já possuía, apesar de ainda muito nova, faziam com que esta pastora de vida começasse a despertar, mal os primeiros cantos do galo ecoassem na madrugada.
Os seus dias começavam bem cedo e eram longos, longos, muito longos. Só terminavam quando os animais já dormiram e quando a mãe, depois de acomodar os irmãos, todos mais novos, lhe dava folga, sempre com as mesmas palavras, secas e frias: - Vai deitar-te, rapariga!
E a menina, de cujo nome ninguém se recorda, obedecia. Deitava-se e dormia, profundamente, aquecida pelo calor do curral.
Também nessa noite, dormira depressa. Porque, agora, o sol já começava a espreitar bastante mais cedo e as noites já eram bem mais pequenas. Dormira depressa e acordara mais feliz do que nunca. Cobriu melhor as duas irmãs que consigo partilhavam o colchão de palha e, pé ante pé, agarrada à cortina que servia de divisória, chegou perto da masseira. Ia procurar uma côdea para enganar a fome durante o dia... Mas a mãe, já desperta no seu canto do casebre, com o filho mais novo a chupar-lhe o peito quase seco, interrompeu-a do meio das sombras:
– Não há pão, rapariga! Comemos o último, ontem à noite. Vê se arranjas, por aí acima, alguma coisa com que matar a fome. E não te esqueças de dizer que sejas pelas alminhas do purgatório!
- Está bem, minha mãe. Eu desenrasco-me. Não se preocupe comigo...Até logo!
-Até logo, rapariga. Que Nossa Senhora te proteja!
– As tábuas do curral não tardaram a ranger e depressa o rebanho desapareceu no caminho, em direção ao monte. À medida que se afastavam de casa, a vista alongava-se por um horizonte infinito de beleza e os olhos da menina brilhavam de fascínio.
– Que dia bonito! E que céu azul...-pensava para consigo, enquanto descascava uma laranja que a tia Maria lhe dera e olhava, com ternura, uma cria gulosa que teimava em não largar o úbere da mãe.
À sua volta, o rebanho saboreava um enorme manto de pasto. E, ao longe, estendia-se um magnífico cenário de arrebatamento: de um lado, aquele imponente e enorme rochedo do Livramento, observando, lá do alto, toda a imensidão; do outro, a verdura macia do vale do lima, no seio da qual se escondia a sua casa.
A manhã começava a aquecer um pouquinho e a menina, com os pés encharcados da subida da encosta bem regada pelo orvalho de Março, resolveu sentar-se num penedo. Assim, os raios do sol eram mais seus, o calor daquela manhã, já primaveril, aconchegava um pouco o seu corpinho de criança. E por ali ficou, sentada naquele penedo, a embalar sonhos e a aquecer os pés!
De repente, uma luz muito intensa atravessou o céu azul e límpido. Era uma luz tão intensa que a menina, instintivamente, fechou os olhou, protegendo-os com as duas mãos. Mas a sua curiosidade infantil logo lhe pediu para ver o que se passava. E foi então que viu uma Senhora! Uma Senhora mais brilhante do que o sol, mais bela do que as estrelas. Vestia roupa branca e uma túnica azul celeste. E, com uma voz suave e carinhosa, falou sorridente à menina que olhava, fixamente, e de olhos esbugalhados de surpresa e algum receio:
– Não tenhas medo, minha filha! Vejo que estás a aquecer-te neste penedo. E a pensar no pão que não tens...
– Quem é a Senhora para saber isso? - interrompeu a menina, com determinação.
– Eu sou a Estrela da Manhã e apenas te quero guiar...- Respondeu a Senhora com um sorriso maternal. - Vai a casa e abre a masseira. Aí encontrarás o ouro dos pobres. Pega e sacia a tua fome!
– Mas eu não posso deixar o rebanho sozinho no monte. É o único sustento da minha família – lamentou a pastorinha.
- Não te preocupes. Eu fico a tomar conta dos animais, enquanto tu vais ao encontro do teu tesouro. Vai, vai...,vai!
A menina correu com todas as suas forças, valados, voou por atalhos. Os seus pés descalços desafiaram obstáculos e venceram o chão agreste. Num abrir e fechar de olhos, estava em casa, ofegante, com o seu corpinho afogado em suor.
Mal transpôs a entrada, deu de caras com a mãe que, de imediato, a olhou com ar ameaçador.
– O que estás aqui a fazer? Onde deixaste os animais, rapariga? - E, sem deixar a filha dizer uma palavra, não parava de ralhar e de lhe prometer uma valente coça, se, por acaso, desaparecesse alguma cria.
Depois de muitos gritos e ameaças, a menina lá conseguiu um segundo para abrir a boca e explicar o motivo do seu regresso antecipado.
A mãe... nem queria acreditar. Quase rebentava de fúria, quando a filha lhe contou a história da Senhora...
– Tu andas a brincar com coisas sérias, raparigas? Eu dou-te uma coça que te mato... -gritou ela, avançado para a menina que, cheia de medo, a custo lhe escapou entre os braços.
Correu, então, para a masseira. E abriu-a com a rapidez de um relâmpago. Estava cheia de pão fresco e bem dourado...
Um silêncio de arrepios encheu a casa humilde, até que a mãe, abraçando a filha, se ajoelhou junto da masseira e, bem apertadas, ambas agradeceram à Senhora um presente tão divino. Rezaram e trocaram um beijo! Foi com esse beijo a dançar-lhe no rosto feliz e com um pedaço de pão na mão que a menina se fez ao caminho e cruzou a encosta, em direção ao rebanho. Estava radiante e queria abraçar e beijar aquela Senhora, a Estrela da Manhã que lhe aparecera naquele penedo e lhe trouxera o pão da vida e a alegria dos pobres. E pedir-lhe que continuasse a guiar a sua família!
Mas, oh surpresa das surpresas, oh desgosto dos desgostos! Tanta pressa, tanta ilusão para nada... Onde está a Senhora mais brilhante do que o sol, mais bela do que as estrelas?
Encontrou apenas um enorme sossego e o rebanho deitado, tranquilamente, na erva pequena e macia. O sol já ia bem alto e a menina, desolada, sentou-se no penedo de sempre, olhando para os animais, à sua frente. Se eles falassem, ao menos poderia perguntar-lhes o que tinha acontecido na sua ausência!
Foi então que, de repente, se ergueu. As suas mãos acabavam de sentir nova aparição. O penedo já não era o mesmo. Na rocha, outrora lisa, estava gravada qualquer coisa. E os seus olhos, esbugalhados de espanto, puderam ver o sinal que a Senhora lhe deixara, antes de partir...A pegada da sua presença!
– Desde esse dia, a masseira da menina nunca mais ficou vazia. E naquele local, ergue-se, agora, uma capela em hora da Senhora da Pegadinha.
– Ao longo do ano, são muitos os devotos que até lá. Á procura de uma luz, ou em busca de uma pegadinha que indique o melhor caminho a seguir, ou em súplica pelo pão dourado do corpo e do espírito, ou...
– Mas é no primeiro domingo de Agosto que o monte se enche de fé e de festa. O povo sobe a encosta e reza à Senhora da Pegadinha. Porque continua a acreditar que ela é no primeiro domingo de Agosto que o monte se enche de fé e de festa. O povo sobe a encosta e reza à Senhora da Pegadinha. Porque continua a acreditar que ela é a Estrela da Manhã sempre pronta a indicar o caminho do Céu, azul e infinito!