Lenda da Santa Comba


Ora um dia sucedeu passar pela ermida de Santa Comba um moço peregrino que se destinava a Santiago de Compostela, onde ia implorar o santo galego, de grande nomeada em terras de entre Douro e Minho.

A sua confessada, a prometida noiva, linda como os amores, adoecera repentinamente de misteriosa doença, e toda se definhava, coitadinha da pobre, sem vida nos olhos, que dantes eram como dois carbúnculos, sem alegria nos lábios, que dantes causavam a inveja dos rouxinóis.

E o namorado mancebo, pobrezinho de Cristo, pôs-se a caminho, cheio de fé num milagre, confiante no grande prestígio de Santiago.

Levava a escarcela vazia, e, por único recurso, para a longa caminhada através dos montes do Minho, a sua rabeca, primitivo instrumento de que fazia brotar sentidas melodias nos lugarejos que transitava...

E nunca lhe faltou pão nem pousada, e através montes e vales, foi seguindo sua romagem piedosa...

Já tinha caminhado sete dias e sete noites, quando se lhe deparou, junto do Lima, ensombrada por castanheiras seculares, a ermidinha de Santa Comba.

Nunca seus olhos haviam contemplado tamanha maravilha, madona de tanta riqueza e brilho!

Ficou como absorto, ficou fascinado. Involuntariamente, caiu de joelhos, em prece piedosa, com todo o fervor da sua alma de crente.

E a imagem da santa não foi insensível à sua oração... Comoveu-a a candura do moço namorado. Descerrando os lábios, num murmúrio doce, muito doce, interrogou:

- Que dor vos alanceia? Que sofrimento é o vosso, moço peregrino?

Entre soluços, o pobrezinho contou à santa as suas desditas, e o que o levava, cheio de esperanças, a Compostela.

- Podeis retroceder... Vossa noiva é curada... A vossa ardente fé é digna desse prémio... Podeis voltar atrás!

Rindo e chorando, não cabendo em si de contentamento, e não sabendo como agradecer tão grande milagre, o peregrino pegou da rabeca, e fez ouvir uma canção plangente, repassada de sentimento, triste, muito triste...

Quando o arco ia a repousar do último gemido, que mais parecia vibrado nas cordas da alma, Santa Comba, olhos marejados de lágrimas, enternecia pela música gemente do violino, descalçou um dos chapins de oiro, e estendeu-o, num gesto gracioso, ao tocador de rabeca, que recebeu, mudo de assombro, a preciosa dadiva.

De regresso a casa, louco de alegria ao passar em Ponte, entrou na loja de um ourives a propor-lhe a venda do sapato de oiro.

Mas eis que o ourives, reconhecendo um dos preciosos chapins da Santa, começou de gritar:

-Roubo sacrílego! Roubo sacrílego! Prendam o ladrão!

E logo o prenderam, e, bem algemado, o conduziram para uma das torres da espessa muralha que defendia a povoação.

Debalde protestou a sua inocência, o pobre! Ninguém acreditava em suas juras. A história que contava, a justificar-se, era tida por grosseiro embuste...

E o julgamento foi rápido, e o moço peregrino foi condenado a padecer na forca morte afrontosa, sendo escolhido para local do suplício o largo fronteira à branca ermidinha que presenciara o crime que lhe imputavam.

Chegou o dia marcado para a execução da sentença. O desditoso conseguiu obter dos seus juízes que lhe fosse dado fazer oração junto à ermida, e ali fazer ouvir mais uma vez - a derradeira! - as harmonias do seu violino.

Já o carrasco espera que lhe entreguem o prisioneiro, para executar a justiça dos homens; já os frades e os religiosos entoam os salmos dos moribundos...

Depois de ter ajoelhado em oração, o infortunado peregrino repetiu a música dolente que tempos antes lhe valera a mercê da santa, - a que ia dever agora a morte, o triste suplício da forca. Assombro dos assombros, milagre dos milagres, maravilha das maravilhas! Santa Comba descalçou o outro pé, e com um sorriso divino, em face da multidão deslumbrada, ofereceu o chapim de oiro, que lhe restava, ao tocador de violino!...

Em vez da execução que estava preparada, logo se improvisou uma luzida festa, de uma alegria sem mancha; e, ao som de adufes e castanholas, houve danças e descantes; foi um dia de folguedo.

E o peregrino pôde seguir livremente o caminho da sua choupana, levando consigo um precioso talismã, uma riqueza: -os chapins de oiro de Santa Comba. Com eles presenteou a noiva, que foi encontrar florescente de saúde...

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