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Lenda do Poço da Liteira


Era uma vez um velho fidalgo, D. Rui de Sousa, morador em Viana, na companhia dos filhos, entre os quais D. Mécia, requestada por todos os jovens das redondezas, com prosápias de alta linhagem, fascinados pela sua beleza e cobiçosos dos seus fartos haveres.

Um dia, surgiu naquela terra ribeirinha, orgulhosa das suas naus a demandarem os portos do Brasil, a mercadejarem a riqueza do açúcar, e enobrecendo a vila de palácios e conventos, um moço esbelto e de grande fortuna, chamado Álvaro Peres, conquistando, logo, a simpatia de todos, com os divertimentos que promovia, os serenins e cavalhadas, os bailes de terreiro para a arraia-miúda, os soberbos banquetes, pródigos de vinhos e vitualhas.

Começaram a palpitar, mais acelerados, os corações das donzelas vianesas, vendo, naquele moço, mesmo ignorando-lhe a ascendência, um futuro marido para uma vida desafogada e alegre.

Também o coração de D. Mécia não resistiu ao sedutor.

E era ela quem Álvaro Peres preferia, nos seus galanteios, no mimo das prendas. Mas D. Rui de Sousa não se cansava de folhear antigos nobiliários, pesados alfarrábios de heráldica, em busca da genealogia do desconhecido.

E descobriu, por fim, com profundo desgosto, que o sangue de Álvaro Peres não era limpo e que ele pertencia à raça judaica, tão odiada, tão detestada, então, e até merecedora da fogueira purificadora da Santa Inquisição.

Sabedora da terrível verdade, D. Mécia quis espiar, doída de mágoa, aquele amor infame, na clausura do Convento de Sant’Ana, onde tinha uma tia abadessa, D. Guiomar de Sousa, que a acolheu com carinhoso desvelo, cobrindo-a com o véu de noviça.

Não lhe acalmaram o peito, todavia, as preces que erguia aos Céus, no silêncio da igreja, onde todas as noites se recolhia, frente a um crucifixo de marfim, onde Cristo agonizava.

A imagem de Álvaro Peres não lhe saía do pensamento, nem do coração.

Numa dessas noites, sentiu que alguém, cauteloso, descerrava o reposteiro da porta da sacristia.

Olhou, curiosa.

Era Álvaro Peres que se aproximava dela, de braços abertos.

Tomada de susto, procurou fugir-lhe, mas, com um gesto inadvertido, derrubou o crucifixo que se despedaçou no chão lajeado da igreja.

Entretanto, o jovem envolvia-a num estreito abraço amoroso.

Sentindo falecer-lhe o ânimo, vendo em pedaços aquele Cristo a quem rogava salvação, julgou-se perdida e perdida se entregou ao doce enlace do Álvaro Peres.

E com Álvaro partiu do Convento, numa liteira que o repudiado judeu trouxera para a raptar. Conhecedor, pela prelada sua irmã, da fuga dos dois namorados, D. Rui de Sousa enviou-lhes, em perseguição, um grupo de esforçados cavaleiros, da guarnição do castelo vianês.

A liteira seguia, rápida e aos solavancos, pela estrada de Ponte de Lima, tentando alcançar terras de Espanha, para um refúgio seguro.

Mas ao chegar a Fontão, a soldadesca não tarda a avistá-la, envolta numa nuvem de poeira. Todavia, foi impossível aprisioná-la e aos seus ocupantes.

Um estrondo terrível assombrou todos!

E, como por encanto, o chão abriu-se num largo buraco, engolindo a liteira e, com ela, D. Mécia e Álvaro Peres, entre clarões de altas labaredas infernais!

Recordando o caso fantástico, existe hoje, num lugar solitário de Fontão, um poço escuro e tão profundo que ninguém lhe conhece o fim.

Dizem-no o Poço da Liteira.

A seu lado, ergue-se uma cruz de pedra que parece lançar a piedade de um perdão àquele amor impossível, ali desaparecido, em tempos intolerantes e cruéis.

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