Lenda do Cervo Rei


Há muitos, muitos anos, num lugar de montes e vales luxuriantes de vegetação e ervas frescas, mesmo junto a um grande e belíssimo curso de rio, estabeleceu-se um grande bando de cervos. Naquele lugar ainda não tinham passado os homens, que já ocupavam as terras do interior. Aí, no interior, os homens organizavam grandes caçadas, não dando sossego e paz aos animais, principalmente aos cervos, que eram os preferidos para os banquetes.

Os cervos encontraram nos altos, próximos do rio, o esconderijo e o alimento que precisavam para sobreviverem. Eram tantos os que fugiam para este local de segurança, que tiveram que se organizar. Escolheram o veado mais forte e belo de todo o bando para seu chefe! Acreditavam todos os veados que, por ser tão grande, forte e belo, o seu chefe só podia vir do Olimpo, ali onde os deuses moravam! E se não o adoravam como Deus, pelo menos respeitavam-no como um Rei!

O grande Cervo liderava a resolução de todos os problemas do bando, escolhia os pastos, organizava as caminhadas pelas veredas mais perigosas. A sua autoridade era respeitada por todos os cervos.

Um dia, ao subir ao mais alto dos montes, colocou-se em cima de um penedo e olhou o longo vale lá ao fundo! Voltando o pescoço para as encostas, sentiu orgulho em ver os seu cervos a pastar em segurança e em tão belo lugar! Nesse mesmo dia resolveu convocar todos os que o serviam para lhes comunicar os seus propósitos:

- Meus caros cervos, chamei-vos aqui para vos dizer que é tempo de sermos nós a mandar neste local. Por isso vamos edificar aqui um reino novo, do qual seremos os únicos habitantes! Fugimos para aqui dos homens que nos perseguem. Mas agora é preciso lutar, e nós lutaremos para que estes montes e vales sejam nossos, e nenhum homem possa aqui entrar!

Todos os cervos, em grande clamor, apoiaram a proposta:

-Viva o Rei dos Cervos! Lutaremos juntos contigo!


Gritavam de tal maneira que todos os montes e vales tomaram conhecimento do novo reino! A partir daquele momento todos deviam cumprir o dever de defender o seu reino até à morte, caso fosse necessário. Era tal o empenho dos cervos, que até os outros animais reconheciam as fronteiras desse reino dos cervos! Com o tempo, e com o falhanço de muitas tentativas de alguns animais e homens mais corajosos, todos temiam entrar nesses montes, vindo a chamar àquele lugar «Terra de Cervaria»!

O Rei Cervo, vendo o sucesso do seu reino, julgou-se invencível! Os veados mais novos iam crescendo em profunda reverência e devoção pelo Rei, ao escutarem, da boca dos mais velhos, as façanhas que ele fizera no passado. Perante tal devoção e obediência, o Rei Cervo, para além de invencível, começou a convencer-se que também era imortal!

Os tempos foram passando, e as tentativas dos homens de conquistar aquele local tão belo redobraram em esforço. Foram anos e anos de luta, que esgotaram as energias e não pouparam as vidas de um lado e do outro. Vieram os celtas, os romanos, os mouros, rodos tentaram aí a sua sorte. Aos poucos os cervos foram caindo, morrendo, tombados pelos ataques dos inimigos.

Aquando da reconquista cristã e da formação do reino de Portugal, já s6 o velho Rei Cervo restava!

Ora, um certo dia, um nobre cavaleiro português, habituado à peleja e à conquista, resolveu que também aquele canto do Condado Portucalense seria terra de Portugal! Era necessário conquistá-lo ao Rei Cervo? Pois então ia lutar com ele! Ousado e consciente da sua valentia, desafiou o Rei Cervo para uma luta, frente a freme. O Rei Cervo aceitou o desafio. Aquele era o seu reino e não era um jovem, por mais corajoso e intimorato que fosse, que o iria vencer. Não era ele da estirpe dos deuses e imortal?

Combinado o dia, lá apareceu o valente fidalgo, cavaleiro de Henrique. Astuto, o Rei Cervo escolheu um campo de batalha povoado de arvoredos e ervas daninhas, ao fundo de umas pequenas valas que ali existiam, um local a que chamavam "valinhas". Impetuoso e fazendo jus à juventude, o cavaleiro forçou a montada para enfrentar sem delongas o velho Rei. Ainda hoje não se sabe que mais artimanhas usou o Rei Cervo, o que se sabe é que apesar da coragem e força do jovem cavaleiro português, foi o velho Rei que venceu o combate, dando a morte ao pobre do fidalgo!

Vitorioso, regressou o Rei Cervo ao alto do monte, carregando consigo a bandeira, que conquistara ao fidalgo cavaleiro. Ali, solitário, hasteava bem alto o brasão presente na bandeira para que rodos soubessem a quem pertencia a vit6ria. Mas numa coisa estava errada o velho rei! Também por ele passavam os anos! Havia-se julgado imortal, mas, com o tempo, depois de tanta luta e tanto comando, as forças começavam a faltar-lhe. Para o não revelar aos pretendentes do seu reinado, pelo qual tanto lutara, foi-se escondendo aos olhares curiosos daqueles que, ao longe, o apontavam como Rei e Senhor daquele lugar.

Com o passar dos anos, os curiosos começaram a questionar-se sobre as ausências, cada vez mais frequentes do velho Cervo Rei. Até que deixaram de o ver! O que seria dele? A pergunta era fácil de fazer, mas a resposta não era assim tão fácil, pois não havia quem tivesse a coragem de ir procurar o Rei Cervo. Até que uns caçadores mais afoitos, ou menos conscientes dos perigos que corriam, atreveram-se na região da «cervaria», tão desejada e apetecida. Em cuidados de caçador iam eles, quando, no meio da mata verde e florida, encontraram sem vida o velho Rei Cervo! Aquela não era a imagem que tinham do glorioso e forte Rei! Ali estava ele, prostrado por terra, com o corpo numa chaga, cheio de feridas malignas! Mas numa coisa ele mostrava ainda a fama de lutador e de senhor daquelas terras: apesar de prostrado, segurava as armas do cavaleiro vencido, o escudo das cinco quinas! Terminava o reinado anunciando o que lhe viria a suceder!

Desaparecido o Rei Cervo, os homens vieram logo de seguida, confiantes na riqueza daquelas terras pelas quais tão ansiosamente lutaram. No lugar onde o Rei Cervo ostentava o garbo a todo o vale, construíram uma cidade, à qual puseram o nome de Cerveira. Mas querendo honrar tão digno antepassado no senhorio daquelas terras, e para que ficasse na memória de todos, desenharam nas armas da sua cidade um cervo em campo verde, destacado, sustentando nas suas patas, bem visíveis e bem presas, um escudo com as quinas portuguesas! Essa terra chama-se hoje Vila Nova de Cerveira!
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