É Lindoso porque é lindo...
Era uma vez um velho homem que foi lançado da muralha do castelo de Lindoso. Na penumbra do cair de uma noite quente de Agosto, três mulheres que cuidavam do milho na laje comum ouviram um grito profundo e lancinante. Qualquer coisa que soou a Latim e que só poderia ter saído da boca do Renegado. Atordoadas de susto, ainda ouviram passos velozes e, de imediato, o galopar a perder-se na lonjura da poeira feita escuridão. Também elas correram, mas na direção daquele grito que há segundos lhes cortara a lama e lhes semeara o coração de viva aflição. Contornaram o castelo. Lá estava a vítima. Enrolada sobre si própria, ainda a esvair-se em sangue. Era mesmo ele. Era o Renegado!
Aos gritos das mulheres seguiu-se, no dia seguinte, o dobre de finados, na torre da igreja. O homem foi a sepultar no meio de um burburinho geral.
- É preciso descobrir o assassino! - repetia o António da Veiga.
- E depressa...porque um crime destes não pode ficar assim. É necessário justiça, e dura, para tão frio e cobarde assassino! - replicava o Araújo de Parada.
- O miserável não fazia mal a ninguém! Trabalho não era com ele, mas também só vivia daquilo que lhe davam. E contentava-se com pouco... Andava sempre com aquela túnica negra, sempre com aquelas vastas barbas e longos cabelos brancos, sempre a viver naquele barraco abandonado...
- Ó António, ele fazer mal não fazia. Mas dava cada ensaboadela a quem apanhasse desprevenido! Quando começava a falar, nunca mais se calava, nem deixava uma pessoa
em paz. Parece que nos perseguia pelos caminhos e nem nos campos nos largava. Sempre a falar, a falar, a falar, parece que em Latim! - retorquiu o Araújo, provocando uma gargalhada geral, meio abafada pelo luto que a todos vestia.
Rodrigo, estudante de Leis na cidade, levantou-se do penedo e ditou com voz firme:
- O Renegado era um grande homem! Tinha uma inteligência demasiado brilhante e um espírito ousado demais...Por isso é que foi expulso do convento. Ele próprio me confessou, uma vez, que viveu quarenta anos em Celanova. Mas, depois, obrigaram-no a sair...
- Porquê, rapaz? Ele disse-to alguma vez? - perguntou o Araújo.
- Porque falava de Deus e do diabo, de Marte e de Apolo, e, com a mesma facilidade com que citava a Bíblia de cor, declamava versos dos clássicos de Roma. Sempre em Latim, porque, dizia ele com os olhos faiscantes de entusiasmo, o Latim é a mãe de todas as línguas.
- Por isso é que eu volto à minha – resmungou o António da Veiga -, um homem que não fazia mal a uma mosca não pode acabar assim com uma navalhada enfiada nas tripas e atirado abaixo da muralha, só por passar o tempo a falar Latim. É preciso fazer justiça!
E justiça foi o que pediu o alcaide do castelo, no fim da missa do domingo seguinte. Junto ao Pelourinho, falou forte e grosso ao povo de Lindoso e pediu informações sobre o crime, exigiu indicações sobre o cavaleiro assassino. Então, um rapaz avançou..., do meio do povo.
- Fui eu alcaide. Fui eu quem matou o Renegado.
Um silêncio infinito fulminou a multidão. E logo uma algazarra de incredulidade.
- Este moço?! Não posso guardar mais para mim este peso e, por isso, aqui estou a confessá-lo e a entregar-me à justiça.
- E por que é que mataste o Renegado, rapaz? - interrogou o alcaide.
- Foi uma longa discussão. Eu bem lhe expliquei que o nome da terra tinha surgido da beleza da nossa paisagem, do encanto das nossas matas, da frescura do nosso rio, da pureza de todas as ribeiras, da doçura das nossas gentes. Subi com ele ao castelo e mostrei-lhe como tudo isto é lindo. Tão lindo que até reis e rainhas, príncipes e princesas que por cá passam ficam fascinados com tamanho beleza. E todos exclamam:”...É mesmo Lindoso! “Mas ele sempre recusou aceitar a minha explicação.
-Como podia recusar, se tu tens razão?
E todo o povo sublinhou o acerto das palavras do alcaide, vociferando em uníssono:
- Pois claro, é Lindoso porque é lindo...
- Bem...- continuou, firme, o rapaz -, ele teimava em garantir que Lindoso vem do Latim. Que tem a ver com limite, com fronteira. E explicava a origem da palavra com a localização raiana da nossa terra e com a delimitação da diocese de Braga. Travámo-nos de razões. E o Renegado exaltou-se.
- Que grande estupor! Então o Latim é para aqui chamado? - desabafou um velho homem de chapéu na mão.
- É mesmo um patife! Disse logo outro, ao lado. E outro, e outro, e outro, mais ao longe...
- Silêncio!- gritou o alcaide. E, virando-se para o estudante, perguntou-lhe como tudo, depois, aconteceu.
- Com os olhos irados e a boca a espumar de fúria, ameaçou-me ao nariz: ”de Latim sei eu e não admito que ponhas em dúvida o que eu digo, seu fedelho, aprendiz de Leis”. E agarrando-me pelo colete, entalou-me na direção do precipício. Tive medo e defendi-me. Puxei do punhal e, no meio da luta, feri-o. Ainda tentou um golpe de asa, mas acabou por escorregar e caiu da muralha, aos gritos: ”Lindoso vem de limitosum,... de limitosum,... de limitosum...”
-Mas não vem! Lindoso vem de lindo, de lindo de lindo!- interrompeu o António da Veiga.
E povo irrompeu aos aplausos:
- Viv'ó Rodrigo! Viv'ó Rodrigo!
O alcaide fez coro com o seu povo e gritou para que todos ouvissem:
- É Lindoso porque é lindo! - E, naquela hora, convidou Rodrigo para as comemorações da elevação da freguesia a concelho. A festa já estava marcada para o dia 5 de outubro desse mesmo ano.
O jovem estudante de Leis teve um lugar de honra. Falou de Lindoso, do concelho, do foral atribuído pelo rei Dom Manuel I, venturoso. E foi demoradamente aplaudido.
Aos gritos das mulheres seguiu-se, no dia seguinte, o dobre de finados, na torre da igreja. O homem foi a sepultar no meio de um burburinho geral.
- É preciso descobrir o assassino! - repetia o António da Veiga.
- E depressa...porque um crime destes não pode ficar assim. É necessário justiça, e dura, para tão frio e cobarde assassino! - replicava o Araújo de Parada.
- O miserável não fazia mal a ninguém! Trabalho não era com ele, mas também só vivia daquilo que lhe davam. E contentava-se com pouco... Andava sempre com aquela túnica negra, sempre com aquelas vastas barbas e longos cabelos brancos, sempre a viver naquele barraco abandonado...
- Ó António, ele fazer mal não fazia. Mas dava cada ensaboadela a quem apanhasse desprevenido! Quando começava a falar, nunca mais se calava, nem deixava uma pessoa
em paz. Parece que nos perseguia pelos caminhos e nem nos campos nos largava. Sempre a falar, a falar, a falar, parece que em Latim! - retorquiu o Araújo, provocando uma gargalhada geral, meio abafada pelo luto que a todos vestia.
Rodrigo, estudante de Leis na cidade, levantou-se do penedo e ditou com voz firme:
- O Renegado era um grande homem! Tinha uma inteligência demasiado brilhante e um espírito ousado demais...Por isso é que foi expulso do convento. Ele próprio me confessou, uma vez, que viveu quarenta anos em Celanova. Mas, depois, obrigaram-no a sair...
- Porquê, rapaz? Ele disse-to alguma vez? - perguntou o Araújo.
- Porque falava de Deus e do diabo, de Marte e de Apolo, e, com a mesma facilidade com que citava a Bíblia de cor, declamava versos dos clássicos de Roma. Sempre em Latim, porque, dizia ele com os olhos faiscantes de entusiasmo, o Latim é a mãe de todas as línguas.
- Por isso é que eu volto à minha – resmungou o António da Veiga -, um homem que não fazia mal a uma mosca não pode acabar assim com uma navalhada enfiada nas tripas e atirado abaixo da muralha, só por passar o tempo a falar Latim. É preciso fazer justiça!
E justiça foi o que pediu o alcaide do castelo, no fim da missa do domingo seguinte. Junto ao Pelourinho, falou forte e grosso ao povo de Lindoso e pediu informações sobre o crime, exigiu indicações sobre o cavaleiro assassino. Então, um rapaz avançou..., do meio do povo.
- Fui eu alcaide. Fui eu quem matou o Renegado.
Um silêncio infinito fulminou a multidão. E logo uma algazarra de incredulidade.
- Este moço?! Não posso guardar mais para mim este peso e, por isso, aqui estou a confessá-lo e a entregar-me à justiça.
- E por que é que mataste o Renegado, rapaz? - interrogou o alcaide.
- Foi uma longa discussão. Eu bem lhe expliquei que o nome da terra tinha surgido da beleza da nossa paisagem, do encanto das nossas matas, da frescura do nosso rio, da pureza de todas as ribeiras, da doçura das nossas gentes. Subi com ele ao castelo e mostrei-lhe como tudo isto é lindo. Tão lindo que até reis e rainhas, príncipes e princesas que por cá passam ficam fascinados com tamanho beleza. E todos exclamam:”...É mesmo Lindoso! “Mas ele sempre recusou aceitar a minha explicação.
-Como podia recusar, se tu tens razão?
E todo o povo sublinhou o acerto das palavras do alcaide, vociferando em uníssono:
- Pois claro, é Lindoso porque é lindo...
- Bem...- continuou, firme, o rapaz -, ele teimava em garantir que Lindoso vem do Latim. Que tem a ver com limite, com fronteira. E explicava a origem da palavra com a localização raiana da nossa terra e com a delimitação da diocese de Braga. Travámo-nos de razões. E o Renegado exaltou-se.
- Que grande estupor! Então o Latim é para aqui chamado? - desabafou um velho homem de chapéu na mão.
- É mesmo um patife! Disse logo outro, ao lado. E outro, e outro, e outro, mais ao longe...
- Silêncio!- gritou o alcaide. E, virando-se para o estudante, perguntou-lhe como tudo, depois, aconteceu.
- Com os olhos irados e a boca a espumar de fúria, ameaçou-me ao nariz: ”de Latim sei eu e não admito que ponhas em dúvida o que eu digo, seu fedelho, aprendiz de Leis”. E agarrando-me pelo colete, entalou-me na direção do precipício. Tive medo e defendi-me. Puxei do punhal e, no meio da luta, feri-o. Ainda tentou um golpe de asa, mas acabou por escorregar e caiu da muralha, aos gritos: ”Lindoso vem de limitosum,... de limitosum,... de limitosum...”
-Mas não vem! Lindoso vem de lindo, de lindo de lindo!- interrompeu o António da Veiga.
E povo irrompeu aos aplausos:
- Viv'ó Rodrigo! Viv'ó Rodrigo!
O alcaide fez coro com o seu povo e gritou para que todos ouvissem:
- É Lindoso porque é lindo! - E, naquela hora, convidou Rodrigo para as comemorações da elevação da freguesia a concelho. A festa já estava marcada para o dia 5 de outubro desse mesmo ano.
O jovem estudante de Leis teve um lugar de honra. Falou de Lindoso, do concelho, do foral atribuído pelo rei Dom Manuel I, venturoso. E foi demoradamente aplaudido.
-Bravo, Rodrigo!-aclamavam os convivas. Isto é falar! É lindo, é mesmo lindo...