A Senhora das Angústias


Foi num domingo de Julho de um ano que a história não menciona. Na igreja de Padornelo, a Virgem sorria no altar iluminado. Mãos caridosas haviam colocado flores em jarras bonitas e um aroma delicioso enchia a Casa do Senhor. A missa estava a chegar ao seu termo. Os fiéis ouviam-na com devoção. No altar, o sacerdote voltou-se para lançar a bênção sobre a assistência. E nesse momento soleníssimo, uma voz doce e magoada encheu o templo! Os fiéis entreolharam-se. A voz vinha do altar. Olharam, então, a Virgem. E com grande espanto verificaram que a sua expressão, outrora sorridente, se transformara numa expressão de dor. E a voz, essa voz celestial, chegou audível a roda a assistência:

- Meus filhos! Escutai-me, vós que sois cristãos! Neste preciso momento alguns que não creem no meu amado Filho renovam o sacrifício do meu Jesus, crucificando-o de novo. Tal ato enche de dor o meu coração de mãe!

Os cristãos quedaram-se estarrecidos. Havia lágrimas nos olhos de muitos. O sacerdote tomando alento, pois também ficara petrificado, perguntou:

- Senhora! Dizei-nos onde se encontram esses pecadores e nós os castigaremos. De novo a voz doce e triste da Virgem Mãe soou:

- Não é castigando que evitareis o suplício do meu amado Filho! Ide e falai-lhes! Dizei-lhes do meu sofrimento! Estão na última casa à direita da rua principal.

Como eletrizados, os fiéis saíram da igreja e dirigiram-se para a casa assinalada pela Mãe de Deus. Chegados lá, ouviram gargalhadas e blasfémias. O padre bateu à porta. Alguém veio abrir. Então os fiéis entraram, quantos podiam, e depararam com um quadro horrível: ao centro da casa estava um corpo de homem, feito de cera e, à semelhança de Cristo, coroado de espinhos, o qual estavam pregando numa cruz. À volta, outros homens riam e proferiam blasfémias. Em cima das mesas, copos sujos de vinho e garrafas vazias.

Uma onda de revolta tomou os fiéis que contemplavam horrorizados tão ignominioso ato.

Correram sobre os blasfemos, no intuito de os espancar. Mas o sacerdote gritou:

- Prudência! Lembrai-vos, irmãos, da recomendação da Virgem Maria!

Os homens suspenderam o gesto castigador. Mas já os outros, saindo da surpresa, tentavam ganhar tempo. Um deles, talvez o dono da casa, gritou:

- Fora daqui, ratos de sacristia! Ou querem ajudar-nos na nossa tarefa? Foi o padre quem respondeu:

- Viemos, porque a Mãe do Senhor a quem estais ofendendo pediu que vos falássemos!

Houve risada trocista. Um deles gracejou:

- E por onde anda em passeio, a mãe deste homem que íamos crucificar? Sem alteração na voz, o sacerdote respondeu:

- Estava connosco, no altar que é a Casa de Deus, e ouvia as nossas comunicações. Porém, de súbito deixou de sorrir. Viu o que se estava a passar aqui. As lágrimas correram-lhe pelo rosto e, magoada, pediu-nos que impedíssemos mais este desacato!

Já não riram os homens. Olharam o sacerdote como se acabassem de ouvir um louco. Depois repararam na gente que enchia a casa e se espalhava pela rua. O mais velho dos que estavam perguntou para os outros:

- Acreditam no que ele diz?

Alguns disseram:

- Não acreditamos!

O mais idoso tomou:

- Se não acreditam, teremos de convir que um de nós é denunciante. Fizemos isto no máximo segredo. Há um traidor entre nós.

Os homens rebelaram-se. E um deles arriscou:

- Talvez tenhas sido tu, já que pões em dúvida o que esta gente diz!

O velho arriscou:

- Acho tudo isto muito estranho. E pergunto: entre os que foram convidados para a festa que

realizámos, algum conhece, na igreja, a imagem da tal mãe de Jesus?

Dois dos sacrílegos levantaram-se. O velho disse:

- Muito bem. Entre os seis que aqui estávamos, dois e mais eu, portanto três homens, conhecemos a imagem que está no altar. É uma figura de mulher, que sorria. Pois proponho que nos dirijamos à igreja e vejamos se a imagem já não sorri. Se assim for, desde já me declaro culpado e arrependido. Caso contrário, voltaremos aqui e ninguém poderá impedir-nos de continuar com a nossa diversão. Estão de acordo?

Os homens gritaram, convictos de que a sua razão venceria:

- Estamos!

Tornou o velho, voltando-se para o sacerdote:

- E tu? Se acreditas nos milagres do teu Cristo e crês no que vieste aqui dizer, promete deixar-nos, com a tua gente, se acaso a imagem continuar no altar a sorrir!

O padre ficou uns segundos calado. Parecia orar no íntimo do seu ser. Depois declarou solenemente.

- Estou de acordo! Vamos todos à igreja!

E aquela gente, minutos antes disposta para a luta, seguiu apressada, coração palpitando, para a igreja de Padornelo.

Brilhavam ainda no altar as velas que não haviam sido apagadas depois da missa. A multidão entrou com os olhos postos no altar. E então soou um estranho cântico, misturado com soluços e orações fervorosas. No altar, a Virgem que dantes sorria mostrava a mesma expressão dolorosa. O padre falou:

- Irmãos transviados do caminho de Deus! Dizei-me: qual é agora a expressão da Virgem Mãe

de Jesus?

Contiveram a respiração, para ouvir os sacrílegos, aqueles que tinham ido por ordem da Senhora impedir mais uma crucificação. E foi ainda o homem mais velho quem respondeu:

- Na verdade... a expressão da Senhora... é de angústia!

Romperam logo clamores:

- Nossa Senhora das Angústias!... Rogai por eles... e rogai por nós!

O velho baixou a cabeça. Depois elevou o olhar para a Santa Mãe de Deus e clamou:

- Senhora das Angústias! Perdoa-me e pede ao teu Filho que nos perdoe! Éramos loucos e recuperámos a razão! Não mais te faremos sofrer!

Um coro de soluços subiu na igreja. O sacerdote exclamou apenas:

- Amem!

E ainda hoje há quem afirme que a Senhora das Angústias, se a olharem bem, não tem sempre a mesma expressão. Em geral, está triste. Mas às vezes, para determinadas pessoas que sabem orar­ lhe, ela volta a sorrir, como Mãe amantíssima que é!

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